Meti a chave à porta e cheirava a torradas... A nossa casa um dia há-de cheirar assim...
Entrei sem fazer barulho... não queria acordar o nosso pequeno mundo... havia um véu intenso... silencioso... consegui sentir os anjos tristes, já sem asas [podíamos ser nós...], a pairar pela casa... fiquei calada, senti cada sombra da tua presença em pormenores mínimos. Fiquei. Senti que te fazia falta, senti que nos fazias falta... sabes... por breve e branda que fosse a tua ausência, era demasiada responsabilidade para mim tomar conta sozinha de uma coisa tão pequenina, mas tão grande... eu sei que era teimosia minha... mas não quis deixá-lo abandonado... é o nosso mundo. Vou tomar conta dele... E nada está perdido.
[Leve Beijo Triste - Paulo Gonzo e Lúcia Moniz]
Fechei os olhos e lembrei-me dos momentos que por ali passámos... o tempo doía. O tempo dói... sei de cor cada bocadinho de ti, cada lugar teu... a curva dos teus ombros, a verruga pequenina debaixo do braço... o sinal nas costas. Podia reconhecer-te de olhos fechados... Não percebi porque tinhas ido.No entanto, sem ter defesas que me fizessem falhar, mais uma vez, pedi baixinho para que ficasses... pedi baixinho que não esquecesses nada daquilo que te dei, e que lá, longe de nós, no sítio onde o tempo se perdeu, no sítio para onde insististe em fugir, pudesses sentir que eu estava ali à tua espera. Pudesses confiar e sentir que íamos chegar àquele sítio mais nosso, mais fundo, "onde só chega quem não tem medo de naufragar"...
[Cada Lugar Teu - Mafalda Veiga]
Voltei a fechar a porta, com cuidado. Não quis magoar nem acordar o nosso doce e pequeno mundo. Ia jurar que ao longe o ouvi chorar... baixinho... senti a tentação de voltar atrás... mas ia doer demais... era uma coisa para ser feita a dois. Tive esperança que, no sítio onde estás, o pudesses ouvir. Sentisses essa vontade de voltar, para pegar nele ao colo e ficarmos os dois, a noite inteira se preciso fosse, juntos, a olhar para ele, a sentir que era nosso, a passeá-lo de um lado para o outro... com ele de olhos abertos a olhar para nós... E nós sempre de mãos dadas... a cuidar do nosso menino... Entrei no carro.
Liguei o rádio e fiquei sentada a olhar para a moldura com a tua foto que trouxe... na verdade não existia uma única foto tua em casa. Não sei como arranjei aquela. Fechei os olhos e, uma vez mais, olhei-te nos olhos. O Brian Adams cantava, ironicamente, que se ollhasse nos teus olhos eu iria ver o que significo para ti... gritava a plenos pulmões as coisas que eu te queria gritar, as coisas que um dia ouvimos os dois... ouviste?!... dizia para olhar para dentro do coração e ver que não havia nada a esconder... Dizia-te para não dizeres que não vale a pena lutar por nós... porque não há nada que eu queira mais que tu... Dizia que não havia amor como o teu, como o meu, que ninguém podia dar mais, Lembrei do dia em que me disseste que me davas tudo o que eu te desse, Lembrei-me que "Everything I do, I do it for you" podíamos ser nós. Porque na verdade somos nós... e dificilmente vamos encontrar alguém algum dia, tão nós.
[Everything I do, I do it for you - Bryan Adams]
Por fim, antes de arrancar, com todas as lágrimas que te prometi não chorar no canto do olho, em fila indiana, uma a uma, a quererem não sair, lembrei que não era do meu feitio ficar sem te dizer nada... Lembrei-me que não era do teu feitio querer que eu ficasse sem dizer nada... Pensei que estávamos apenas a fingir coisas que não sentíamos, para tentar mascarar algo mais forte. Pensei que não estávamos a ser justos connosco, ao fingir algo que não éramos para agradar a um qualquer mundo desconhecido. Liguei o carro, pus a primeira, e comecei a procurar-te...
São 11h01 e o meu telemóvel ainda não tocou. Provavelmente está avariado...
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O Poeta dizia que as cartas de amor eram ridículas... assim como o amor... tu um dia disseste-me que dizer "amo-te" era ridículo... provavelmente sou ridícula... mas "o amor acho que já existe"...